quarta-feira, 10 de julho de 2019

MEU PAI E EU


MEU PAI E EU
Antonio Augusto Ferreira

Eu fui criado assim, gato selvagem,
nos arredores da cidadezinha,
guri sempre fugido pros potreiros
onde pastavam vacas e cavalos;
e eu por eles já sentia estima
e esse fascínio que até hoje sinto.
Nenhum cuidado me zelava a vida
queria era viver a liberdade,
e aprendi  a defender-me dos perigos
por puro instinto.

A importante pessoa dessa infância
foi meu pai.
Mas meu pai era assim, a lei, o aço,
o que não transigia em meus deveres.
Só sabe Deus o que terá passado
em sua vida pobre. O sofrimento
como que a derrota de uma carapaça
que o fazia parecer imune
à fome e à sede,
para que moldasse o corpo em argamassa.
Hoje penso que a força da cobrança
ensinou-me a esgrimir contra a parede.

As suas bondades
eram dissimuladas aos meus olhos,
que só o viam duro, teso e forte.
Para mim, meu pai era um palanque
assentado à frente do seu rancho,
insensível ao frio ou ao cansaço,
incapaz de desviar-se do seu Norte.

Nem nas amargas maldizia a vida,
nunca lhe ouvimos uma voz de queixa,
pois não se permitia comiseração.
Muito ao contrário, reagia duro:
A vida é uma luta, vence o mais capaz,
o que mais suar sobre sei eito,
o que mais cedo madrugar.

Em pequeno, muito vagamente
lembro seu colo,
substituindo a mãe, que já se fora.
Mas essa imagem me é tão remota
que raras vezes a reconstituo.
O tempo que me vem mais à memória
é o do guri que, mal a lei saía,
largava tudo pra voar na rua.

Eu amava meu pai e na sabia,
ou , se sabia,
tratava de ocultá-lo a mim mesmo.
As manifestações de afeto familiares
pareciam perturbar-me a natureza.

Eu era apenas um menino
que se omitia em demonstrar ternura
temendo que algum gesto de carinho
pudesse confundir-se com fraqueza.

Havia vezes em que eu o odiava
e o rejeitava, ao me sentir sozinho,
porque cobrava cada ato falho,
porque ralhava contra qualquer falta
que pudesse levar-me ao descaminho.

As palavras de meu pai eram tais ordens
que se devia cumprir de qualquer jeito.
Dessas palavras, e dos gestos fortes
ficou-me para sempre esse preceito
do amor ao trabalho e à família.

Mas o trabalho nesses longes tempos,
era de sol a sol, áspera trilha
que se devia abrir com toda a força
e renovado vigor a cada dia,
a vida inteira.

Já a família se agrupava muito,
toda a pobreza era irmã mente repartida
e a dor e a enfermidade eram veladas
em conjunto.

A cada filho que se amancipava
suando seu salário,
o tratamento de meu pai ficava ameno,
talvez mais doce, um pouco mais sereno,
mas a cobrança seguia ao necessário.
Nunca o vi chorar.
Seus sentimentos eram tão cerrados
que foi preciso me fizesse homem
pra desvendar o seu amor imenso.
Esta descoberta veio aos poucos,
a idade chegara para todos
a lei passou então a ser mais branda
e o cuidado talvez menos intenso.

Eu
que me fiz adulto antes do tempo,
saí de casa como um filho sai,
sem saber o quanto a rua me ensinara
nem atinar a força da argamassa
que herdara de meu pai.

Nem eu mesmo sabia de que pedra
eu era feito. Tinha meus sonhos
e a insegurança daquele que
começa,
quando atirei a vida sobre os
ombros
e parti para o mundo a me provar.
O medo de ser frouxo me assustava;
eu sabia que atrás de cada esgrima
havia uma parede
que não me deixaria recuar.

Hoje a vida passou, vou cerro
abaixo,
o corpo vai sofrendo seus estragos,
mas me alegra saber que o coração
é pedra doce – fácil de amoldar,
mas que sofre sozinho nos seus medos
e jamais reparte seus fracassos,
pois não lhe permitiram nunca
o direito de chorar.

É nessas horas
que meu velho volta e me levanta
na palavra:
Assim é a vida, só se vence quem lutar.
Aperta o coração, afirma o braço,
ergue a cabeça e segue em frente.
Lá é teu lugar.

LOUCO

LOUCO

Vaine Darde

Eles me interditaram...
Afastaram-me das domas,
Não me deixam usar adagas,
Nem, sequer, cuidar do fogo...
E conspiram contra mim
Com silêncio e solidão.

Pois alegam, uns aos outros,
Que me tornei perigoso.
Desde quando me encontraram
Conversando com as ovelhas,
Desde quando descobriram
Que eu cultivo girassóis
Por devoção às abelhas.

Dizem que ando variando
Com milongas circulares
Na canção dos cataventos,
Que fiquei de miolo mole
e me desfiz das esporas
Por ter pena dos cavalos...

Proibiram-me transpor
Os limites da porteira
Numa espécie de desterro
Que me exila na querência.
Mas, eu sei que eles não sabem
Que os olhos de quem sonha
Vêem além dos horizontes...

Eles dizem que sou louco,
Porque vago pela estância
Conferindo cada ninho
Onde os vôos eclodiram,
Fazendo tenda do pala
sobre o topo das coxilhas
Pra navegar nas estrelas
Nessas noites de verão...

(Imagina, se soubessem que eu carrego
nos pessuêlos, uma colméia de versos...)

Mas enquanto eles proseiam
Agrupados no galpão,
Para encantar meu silêncio
O vento canta pra mim,
As sangas cantam pra mim,
Os grilos cantam pra mim.

Enquanto eles, que se julgam certos,
Tomam mates sonolentos
Com a água da cacimba.
Eu, numa cambona de açude,
Sorvo a lua num porongo
E povôo a solidão
Com as ausências que me habitam.

Eu embrulho a palavra
Numa folha de papel...
Onde guardo traduções de ocasos e auroras,
Onde exponho meu silêncio
Com zumbidos de abelha
E confesso a ternura
Que dedico aos que me odeiam.

Eu trabalho mais que eles.
Sou só um nas sesmarias
Pra saber de cada flor,
Pra saber de cada pássaro
Com que o campo sinaliza
E os outros não percebem...

Eles sequer, reparam
Quanto sol de cada dia
Se acumula nas laranjas,
Que porção de lua cheia
Se derrama em frenesí
Na gestação da semente.
Eu, sim, eu sou livre entre
o campo e as estrelas,
Eu sei todos os caminhos
que a querência me revela
Porque vivo além de mim
O que a vida me concede.

Mas, se louco é ser dono de si mesmo
E saber que as laranjeiras
Choram lágrimas de pétalas
Num cio vertiginoso
De excessiva floração,
É ter consciência plena
Que a loucura é a poesia
Que, por não caber do peito,
Se extravasa em dialetos
E ilumina seus eleitos:

Então eles estão certos:
Eu sou mesmo perigoso,
Uma ameaça constante
De povoar o galpão
Com guitarra e arco-íris,
E abelha, e girassol.

Não, não é a mim que eles temem
Porque sabem inofensivo
Meu delírio musical...
O que eles não suportam
É aceitar a realidade
De um louco ser feliz.

GENUÍNO

GENUÍNO

Henrique Fernandes

 Vi meus pais ficarem velhos...
Meus avós virarem quadros...
...meus bisavós tornarem-se lenda,
e meus filhos homens feitos...

Meus netos trazem o jeito
dos moldes deste lugar.
Alheios a tecnologia
preservam a geografia
edificadas em si.

Não somos nenhuma tribo
que vive alheia no mundo.
Somos apenas interioranos
mistificados na raça
patriados de um clã gaúcho.

Neste momento recolho
meus princípios interiores
e recomponho os valores
me transpondo de lugar.

Sou do tempo que o respeito
Não era pra ser bonito,
Era mera obrigação!
Ser justo era dever
E a fórmula do bem viver
Não dependia de cifrão.
Seguimos o dialeto das luas
pra colher e pra semear.
Seus ciclos nos dava o norte
pra não depender da sorte
e a hora certa de enfrenar.

A casa do João Barreiro
de arquitetura barroca,
conforme o lado da boca
se sabia das enchentes.
Quando o ano era de seca,
o barreiro fazia a porta
para o lado do sol nascente.

Assim te explico paysano
que a massa de nosso tutano
tem a essência ancestral...
...Dos homens de cerne duro
que trazem as rédeas do futuro
nas argolas d’um bocal.


 Não nos dobramos ao modismo
de rotineiros padrões.
Nossas bombachas tem favos
e nossas esporas tem cravos
pras baldas dos redomões.

 Nós viemos de um lugar
onde o aperto de mão se mostra
a firmeza do braço...
... que a saudade de um amigo
se mata cevando um mate,
pois quando a saudade bate
nada melhor que um abraço.

Sabemos que por trás dos
cerros existem formas mais fáceis
de dar vida ao pão.
Mas preferimos a terra, o arado e
a enxada, para o milagre do trigo
nos dar a graça do grão.
Ainda temos confiança
nas palavras e nos atos.
 Não lavramos escrituras com
registros cartoriais...
... pois sabemos que as palavras
trazem timbres de bigodes
que não precisam de avais.

Por trás de cada olhar,
vingam esperanças singelas
que não vislumbram ganâncias.
Ficam pra cá da porteira
os sonhos despretensiosos,
restaurados nas molduras
dos quadros dessas estâncias.

Falamos ainda em arroba...
Medimos os campos em quadras...
Adivinhamos as sacas
que brotarão nas lavouras...

As tropas que passam lerdas
nas estradas desses fundos,
se sabe pra onde vai
e de que chão vieram...
Além dos velhos ponteiros
que cruzam assobiando...
Como se fossem de casa
sem nunca passarem antes.


Por mais que o mundo caminhe
sem rédeas rumo ao progresso,
eu troteio no regresso,
na contra-mão do futuro.

E vou contra a correnteza,
pois não busco águas calmas...
São geratrizes terrunhas
que trazem o campo nos olhos
e uma inquietude na alma.

Seu Genuíno...! Fica tranquilo,
que aqui o canto dos grilos
seguirá nas serenatas,
e quando um mocho brazino
se “apartá” do rodeio
e se ‘’infurná” no repecho...
Ahhh, terá um índio vaqueano
desatando um “doze braça”,
dando boca na picaça
inda atada pelo queixo.
...e nós prosseguiremos fazendo taipas,
espichando cercas e arando o chão...
Dando pouso para os bastos
no lombo dos aporreados
que depois de "descurinchados"
vão pras garras do patrão.

Lhes garanto que esta raça
que vos falo e que sustento,
jamais frouxará um tento
embora o tempo persista.

Seu Genuino...! Fica tranquilo,
que os teus sonhos de menino
são os mesmos que desquino
nas loncas de um couro bueno.
Pra os de antes...
...pra os de agora,
e pra os que virão depois,
estará no casco do boi
e no rastro das esporas,
os que embuçalam auroras
com cicatriz de serenos.
Com isso te confirmo
que seguiremos altivos,
campeadores e teatinos,
com filamentos de pampa
na mais beduína estampa
simplesmente genuínos.

ESTAÇÕES


ESTAÇÕES
COLMAR DUARTE

A vida imita as estações
Ao vê-las em ciclos sempre iguais,
Sempre girando.
Sem pressa ou pausa
O tempo vai passando
Medido pelo sol, Pelas estrelas.
Nas engrenagens de um relógio eterno:
Primavera, verão, outono, inverno.

Nascer, andar, crescer,
Florir sorrindo
Ao som feliz do canto das cigarras.
Ao sol das esperanças e quimeras
Reviver o espanto
A cada hora.

Pois ser criança
É viver a primavera.
Depois,
não mais conter essa energia
de sol inovador que a tudo aquece;
contestando com clara rebeldia
costumes e valores desgastados;
descobrindo o amor
e sendo amado,
eclodindo sementes para as messes.

Com chuvas passageiras,
Ventanias,
Queima o sol de verão
Da mocidade.

Mas muda o tempo
E amaina a tempestade.
O céu é azul,
As nuvens, de algodão;
Há pássaros com asas de silencio
Revoando sobre a verde imensidade.
Há gorjeios nos ninhos e acalantos
Quando a noite enternece a paz dos campos.

Os dias são mais claros, mais
Tranqüilos;
É suave o vento, não abrasa o sol.

Os arrozais maduram as espigas,
Há trabalho e fartura,
Vinho e pão.
É tempo de aguardar, como as formigas,
Para o rigor dos dias que virão.


Ao desfolhar as ilusões antigas,
Sentir que o futuro já é presente.
Com a certeza da serenidade
Caminhar
Com os filhos pela mão.

O sol de abril
Que já dissipa as sombras
É o sol de outono
Da maturidade!

Então se cala o pássaro cantor;
O céu muda de cor com as neblinas.
As geadas encanecem as manhãs;
São mais longas as noites,
Mais escuras;
Sem cricrilar de grilos nas lonjuras,
Sem o grito de alerta dos tajãs.

Enterraram seus cantos as cigarras.
E não se escutam mais as algazarras
Dos filhos
Que partiram,
Um a um,
Buscando uma razão para viver.

A solidão tem as asas de um anjo
E as mãos de luz
Que sabem abençoar.
Feliz quem vive o tempo de perdoar,
Tempo de olhar com os olhos de saber
E de adoçar a benção de viver.

E assim retornará ao recomeço
O ciclo das chegadas e partidas.
Quem já cumpriu as estações da vida
Já de voltar
na alma das sementes.

Vai o ancião,
Curvado pelo tempo,
Com o neto aprendendo a caminhar.

Se um gastou as forças que tivera,
O outro
Vê a vida começar agora.

É o inverno
Que passa e vai embora
Para que chegue outra primavera!